segunda-feira, 21 de maio de 2007

Ilusão Silenciosa

Por detrás de cada fotografia está uma respiração sibilante, irmã do vento e da memória.

No acto de fotografar todas as emoções podem surgir do seu esconderijo, desviando o corpo para aquilo que não está ali presente. Posso estar a ser embalado numa sensação passiva de beleza narcótica e sou levado a representar uma realidade desinteressante. Isto acontece porque me esqueci de pôr a minha ilusão a agir sobre o assunto que enquadrava.
É o corpo que fotografa. O corpo não está fechado para si mesmo, ele vê e sente a fragilidade do efémero. Também ele está lançado nesse turbilhão chamado tempo. Tenho de estar presente de corpo inteiro. O olhar, a cabeça e o coração no mesmo diálogo, nas mesmas decisões.

Há sensibilidades que estão longe da eficácia. A sua honestidade, a incapacidade de dissimular, a tendência cristalina para agir segundo os seus próprios valores, desvelam um caminho repleto de pedras, abismos, hesitações. Quantas quedas entre o sonho e o que a realidade pede. No entanto, sem sonho pouco fica que valha a pena. E sem o cuidado, a atenção que o mundo pede, que os outros pedem, o que seríamos nós?

Uma fotografia pode tirar-nos as palavras, fechar-nos literalmente a boca com o amor, a violência, o brilho do mar nas pestanas. Mas esses reflexos do tempo, mesmo aqueles que achemos pouco interessantes, não deixam de lançar perguntas ao olhar do interlocutor. Nem que seja:
- O que é? Quem foi? Onde será?
E assim, o universo deve ter mais perguntas do que pontos de luz a denunciar uma pulsação.

O silêncio é essa presença feita ausência, ou algo ausente que volta a nós, é o misterioso acontecimento por detrás de um olhar.
Nesta dicotomia amorosa a fotografia é íntima do silêncio.
Qual seria a intensidade do desejo se tudo fosse pronunciado? Tudo revelado?

O silêncio conotado como algo negativo configura, sobretudo na cultura ocidental, uma fuga para a frente. Esse embaraço de suportar a densidade do outro expõe a falta de recolhimento em relação a nós próprios. Se as visões não nos abandonam mesmo quando temos os nossos olhos fechados, se uma imagem pode valer mais do que palavras, o silêncio também pode falar mais alto do que aquilo que pensamos.
A fotografia mimética, reprodutiva, assemelha-se a determinadas frases que devido ao seu uso utilitário vão perdendo a sua intensidade metafórica. A profusão de imagens nos mais diversos suportes, nos mais diversos locais, banaliza o olhar e satura a visão, porque essa torrente imagética está ao serviço de um conceito utilitário que quer impor-se como espelho do mundo.

A imagem sublima o real. Vivemos grande parte do nosso tempo sob o jugo desta visão perfeita do mundo. A concepção desta realidade relata continuamente aquilo que passa à frente dos nossos olhos, como se uma fantasia tornasse todos os dias iguais a si próprios. Num mundo onde a ficção já não tem espaço para sonhar a vida, a imagem já não pode imaginar o real, porque ela se metamorfoseou naquilo que deveria ser o seu elemento dialético - o próprio real.

A vida próxima, actual e táctil acorda-nos desse sonho vivido num ecrã, numa imagem. Momento esse que abre no tempo e no espaço a vontade de ver o ainda não visto, de trazer ao visível o que em silêncio se desenrola na nossa consciência.

Para além da fotografia ter a tendência para objectivar rastos do passado, ela possui também a capacidade de desafiar o presente e o futuro. Imaginar como seria, o que poderá vir a ser a invenção daquilo que olhamos - colocando em jogo o erro, o imprevisto, o inacabado, uma gramática cheia de tensões, paradoxos, pausas e movimentos. Dar imaginação a um assunto não é acrescentar um silencioso enigma ao mundo?

in «cais» nº100, Julho/Agosto 2005
Ricardo Bento

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